
O clarão que anuviou a minha visão ainda projetava floreios brancos de luz à minha volta. Detritos e fumaça se misturavam ao caos de estrelas e poeira. Nunca em tanto tempo de existência, vi algo tão belo e tenebroso quanto o que acabei de presenciar.
O homem estava na sua mais perfeita forma, os sentidos impecáveis, a tecnologia alcançara patamares inacreditáveis de evolução, mas nada disso pôde impedir o que aconteceu. Se algum tipo de ser ou criatura quiser algum dia saber o que aconteceu naquele pontinho do universo, terá somente o pó para responder.
Na verdade eu já estava morto quando tudo aconteceu, não sei bem quando morri, nem me lembro como, mas sei que foi a pelo menos 500 milhões de anos. Não me pergunte por que ainda estou aqui, simplesmente morri e o famoso túnel com a luz ao fundo não apareceu. Com o passar do tempo as pessoas que eu conheci se perderam em algum lugar da minha mente, assim como eu me perdi para o mundo. Antes de partir eu imaginava a morte como um momento de eterna paz, onde encontraria aqueles que já teriam partido, aproveitaria os ônus de ter sempre vivido de forma simples e tranqüila, sem nenhum ato de maldade significativo contra ninguém, mas fui simplesmente reduzido a uma subvida, condenado a vagar pela Terra como um expectador, sem jamais ser visto, ouvido, sem nunca mais ser notado.
Tantos milhões de anos se passaram e eu jamais encontrei alguém na mesma situação que eu. No início imaginei que teria uma missão, algo não terminado, procurei todos que conhecia, tentei entrar em contato, só consegui descobrir que todos os médiuns são nada mais que charlatões. Percorri por tudo nesse planeta, conheci desde as florestas siberianas até o topo do Himalaia, desde as casa mais pobres no centro da África, mansões em Mônaco, bombas e tiros no Oriente Médio. Vi países se desfazendo, outros se formando, terríveis desastres ambientais, guerras e mais guerras. Fui também observador da descoberta de curas para doenças consideradas incuráveis, e também o surgimento de avassaladoras epidemias. Mas por mais que eu visse, por mais conhecimento adquirisse, por mais vontade que eu tivesse de sumir finalmente, nada aparecia para me salvar, nenhuma mão se estendia para me regatar da minha própria existência.
Procurei espiar as mais altas autoridades em tecnologia do mundo a algumas centenas de anos atrás, tentar descobrir se eles tinham algum modo em que pudesse contatá-los. Com isso descobri algo que quando era vivo sabia que algum dia ia acontecer. A Terra estava com seus dias contados, em pouco tempo, algo como cem ou duzentos anos (para mim, menos de um segundo) o Sol terminaria suas atividades e a Terra assim como todos os planetas do sistema solar seriam engolidos pela terrível explosão que ocorreria devido à morte da nossa Estrela maior. Não podia haver melhor notícia que essa para mim, tudo estaria terminado, a minha tortura, ou castigo seria finalmente finalizado junto com toda a vida. Por mais que eu nunca imaginasse que estaria aqui para ver isso, era um alívio tamanho para mim, era como se estivesse prestes a tirar um cochilo depois de dias e dias sem dormir.
Aqueles vivos que fizeram essa descoberta secretamente começaram projetos para fugir antes que o inevitável acontecesse. Duas coisas eram consideradas, pelos cientistas, como as maldições da humanidade: a morte e a prisão dos homens na Terra. Isso porque eles nunca conseguiram reverter a morte, ou ao menos contatar alguém como eu, que já havia passado por ela. Também nunca tinham conseguido colonizar nenhum outro planeta, ou chegar a outros sistemas solares, o que prendia o homem àquele planeta que insistiam tanto em maltratar.
Diziam os mais religiosos que Deus havia feito a Terra para o homem e o homem para a Terra, que daqui Ele jamais permitiria que saíssemos.
Quando era inevitável divulgou-se o fim da Terra. Os mais ricos compraram seu bilhete para a vida em espaçonaves de capacidade planetária, que decolariam pouco antes da grande explosão em busca de um novo lugar para morar. Tantos outros se suicidaram ou cometeram loucuras por saberem que o fim estava próximo. Começou uma guerra monstruosa, a mais destrutiva de todos os tempos, onde se disputava quem estocaria mais recursos para viver fora daqui. Em pouco tempo as mega espaçonaves partiram, e só restaram aqueles pobres ou considerados sem importância para a prosperidade. Quem ficou passou a viver como animal, sem perspectiva de amanhã, sem alguém que pusesse controle e organização à situação, pois ninguém aceitava mais ser controlado.
Até que o processo começou. Foi aos poucos, a temperatura subiu gradativamente, e os seres morreram aos poucos, sobrando, perto do fim definitivo, somente a mim e as baratas. Até que um dia um clarão veio ao longe, havia fumaça por todos os lados, e tudo pareceu tão frágil, desintegrando-se como papel no fogo. Eu finalmente suspirei aliviado, era o fim de todo o meu sofrimento, de uma existência sem sentido, não queria que houvesse mais nada depois daquilo, só queria simplesmente deixar de existir!
A luz foi intensa demais e o clarão ficou na minha frente por muito tempo, por mais que tentasse fechar os olhos era só o branco à minha vista. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito. Mas pedia com todas as minhas forças que estivesse em um processo de destruição.
Finalmente recuperei minha visão, mas continuei com os olhos fechados, com receio do que estaria na minha frente. Talvez um homem barbudo, todo de branco, seres com asinhas, mesmo se fosse um chifrudo com um tridente eu o daria um abraço como se fosse um irmão. Mas não foi nada disso que me apareceu. Havia somente destroços, muita poeira. Eram as naves que partiram da Terra, pelo visto eles não tinham ido longe o suficiente para que não fossem atingidos pela grande explosão. E toda a humanidade se reduziu àquilo, pó!
Como uma maldição, a pior de todas as maldições, eu vago pelo universo, pelo espaço vazio, mais solitário que nunca. Impossível existir criatura mais desesperançosa e mais fatigada que eu, com um interminável buraco negro como destino.
Lembro deste seu conto de muito tempo atrás!
ResponderExcluirmuito bom!
abração